quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Nota

Levantou-se uma brisa ornamentada de mofo e, com ela, sucumbiram as memórias abençoadas dos míseros e pacíficos dias que formavam parte forte da minha dourada aliança com o extrínseco.
Levantou-se o vento, levando as folhas rasgadas, a tinta gasta e permanente e os finais de cada uma das histórias que criei para o meu livro.
Eu tinha planos para hoje... Planeava partilhá-los com aquela doce criança de pequenas tranças escuras, esfarripas nos grandes olhos que me fitam abertamente como se admirassem cada mecha do meu cabelo cor de avô.  Chama por mim, aguarda a minha chegada no seu momento de lazer, sorrindo ao de leve, contente pelo momento de liberdade em que se pendura no baloiço e me conta o seu dia. "Hoje aprendi a escrever e a pintar. Um dia vou ser como tu"- diz-me, enquanto noto que se abre um sorriso rasgado na minha face, sinto um tremendo orgulho naquele pequeno ser tão fraco, tão inocente porém repleto de aspirações. Disseram-me me que ela é minha neta mas... eu... Eu não tenho memórias vivas... O meu pensamento funde-se entre palavras e imagens que não consigo juntar, como uma peça ensolarada de um belo puzzle que se afastou das peças-irmãs.
As recordações que esculpi com carinho e suor eram belas, tremendamente belas, com um migalhinho de nobreza a esvoaçar em cada discurso proferido, de tons primaveris que saciavam a alma a cada um dos meus atentos ouvintes. Recordações perdidas... Levitaram para longe e largaram a terra que piso, o tecto firme que me sustentava. Deixaram-me vazio de personalidade, sem memoriais para partilhar.
Ausente da minha presença, sopra o vento sobre as árvores lá ao longe e as nuvens encavalitam-se umas nas outras. O céu adquiriu tonalidades avermelhadas e estou preso nos meus próprios pensamentos. A pequena interrompe a minha divagação, abre muito os olhos e coloca a sua face perto da minha, enquanto me chama.
-Avô!
Sobressalto-me e ela ri de mim. Estou encantado com a leveza daquele riso, com a paz que os olhos sorridentes me transmitem, com o amor que cresceu a cada dia pela pequena, pela harmonia que sinto perante as corridas que dá para alcançar as pombas que alimentamos juntos, pelos mesmos cafés que partilhamos onde eu sucumbo ao meu vício e a aconselho a nunca chegar perto dele. Estou encantado com a minha menina de cabelos encaracolados e vestido de pregas que ela faz bailar, enquanto rodopia sobre si própria e sobre as folhas caídas no jardim. É Outono. Ela é fã do Outono. Gosta de ver as árvores desnudadas, as aves migratórias, os sobretudos a desfilar pelas ruas tristes e solitárias, nada convidativas no tempo frio. Gosta da chuva, muitas vezes me deparei com o seu rostinho inocente a olhar brilhantemente as gotinhas que se adivinhavam na janela do meu quarto. Sei que também gosta do vento, do som que este faz quando roça a esquina e leva consigo um apetrechado de folhas e raminhos na sua dança bamboleante repleta de cicios. Ela havia apanhado folhas do caminho que secou nas páginas de um livro. Apanhou-as da nossa árvore musculosa que enche os caminhos de cimento de rebentos e contou-me que iria realizar uma colagem na escola para terem a salinha decorada de motivos da estação. Ela ficou animadíssima com a ideia da professora. Tem-se empenhado em encontrar as folhas mais sublimes e coloridas e mostra-mas orgulhosa de si própria. Sei que terá um futuro promissor ou que, pelo menos, tem qualidades e inúmeros talentos que a podem levar longe. Sei que é saudável e não cairá em doenças como a minha podendo concretizar os seus desejos e dar asas às suas aspirações. Sei que terá belos traços quando for adolescente, sei que será de baixa estatura por culpa das leis impostas pela hereditariedade, sei que tem possibilidades vastas de sofrer de problemas de índole cardíaca e umas tantas outras de diabetes. Sei que será o meu maior motivo de orgulho, a noiva e mãe mais bonita deste mundo. Sei que será sempre a minha menina, a minha única neta e que a irei guiar neste mundo que introduzi na sua pequena mente.
Disse-lhe um dia para me procurar nas estrelas quando eu for embora, ela prometeu-me que o fará.
Hoje chega, não consigo escrever mais. Este tempo pachorrento puxou pelas minhas maleitas, glorificou a dor que imana das minhas velhas articulações e deixou-me em ponto morto. Preciso de um cigarro para me acalmar e vou embora daqui, não me lembro de nada para contar. Vou levar a minha catraia do baloiço e vamos para casa. Vou deixá-la pintar com os meus marcadores, nunca a tinha deixado. Há uma primeira vez para tudo na vida...
Sinto que o meu vício me está a matar mas dependo dele. A fedelha partiu a tampa do marcador encarnado, fico furioso, grito com ela, deixo-a a chorar no meio da sala, chamo-lhe inútil, fico a amaldiçoar o dia em que nasceu. Eu sabia que não devia ter emprestado os marcadores, eu sabia que hoje não é um bom dia. Hoje estou mais para lá do que para cá.
Sinto-me velho, louco e desamparado de forças. Os meus pulmões atacam constantemente e a respiração está tão pestilenta como os rebuçados de mentol que deixei acumular no bolso do fato bege. Sinto o fim a aproximar-se mas preciso de fumar! Vou embora, vou dar vazão ao meu vício! A pequena ficará bem ao contrário de mim.
Sinto dores, doses mortíferas de dores... não vou durar muito mais tempo. A caneta escorregou-me e parei de escrever. Os meus dedos estão roxos, as mãos tremem-me, a cabeça está colossalmente pesada, o coração esqueceu-se de dar uma e outra batida e a respiração solta-se em forma de soluços continuados que deixam imóvel, irreconhecível numa tonalidade entre o amarelo e o arroxeado. Estou a morrer e a minha neta está presente. Ordeno que a levem daqui! Quero que me recorde como o pintor que a ensinou a manejar os pincéis e a preparar a aguarela bem como a colorir a marcador, bonequinhas vestidas a rigor com costumes do país. Quero que me recorde como o apreciador de poesia que recitava frases de livros de colegas empenhados no ofício, como o escritor de belas histórias antigas de moças com bacias na cabeça que seguiam descalças pela calçada. Quero que me recorde como um homem forte, sábio, conhecedor do mundo e das belas-artes. Não quero que recorde o meu fim animalesco provocado por um vício que se apoderou de mim. Não quero.
Deixarei o meu livro de poesia sobre a mesinha de cabeceira dela. Escrevi lá uma nota a pedir que o leia e que tente criar poemas de bênção do horizonte, de homenagem à natureza que nos rodeia. Ela mais tarde irá compreender a essência das coisas, verá que somos os génios incompreendidos, numa família em que eu era o louco desmedido. Verá que as coisas fazem sentido quando vistas com o coração e não com os olhos. Ver-me-á metaforizado nas estrelas que preenchem o pano negro. Sou a estrela mais brilhante, minha querida.
Olha, olha as estrelas, prometo que irei lá estar! Com amor, JF.

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