terça-feira, 30 de novembro de 2010

"Canção de Alterne"



Pára de chorar
E dizer que nunca mais vais ser feliz
Não há ninguém a conspirar
Para fazer destinos
Negros de raiz
Pára de chorar
Não ligues a quem diz
Que há nos astros o poder
De marcar alguém
Só por prazer
Por isso pára de chorar
Carrega no batom
Abusa do verniz
Põe os pontos nos Is
Nem Deus tem o dom
De escolher quem vai ser feliz

Pára de sorrir
E exibir a tua felicidade
Só por leviandade
Se pode sorrir assim
Num estado de graça 
Que até ofende quem passa
Como se não haja queda
No Universo
E a vida seja moeda 
Sem reverso
Por isso pára de sorrir
Não abuses dessa hora
Ela pode atrair 
O ciúme e a inveja
Tu não perdes pela demora
E a seguir tudo se evapora


Letra e canção de Rui Veloso, um dos melhores artistas portugueses! 

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Rasgados

Parei
Naquela paragem tão breve
Onde o vento me acolheu
E abalou a dança das espigas sonolentas
E, florescendo num ápice a neve,
A carnuda rosa se ergueu
Leve, levemente...

Parei
Num tempo tão sinónimo
Que o relógio desvitalizou-se
E protestou do fundo dos seus pulmões.
Os ponteiros pecaminosos desviaram-se do rumo
Por um homónimo,
Fruto de mais variadas oscilações
E num dilúvio tão doce
Hora é de procurar comunhões.
E a precisão, que é dela?

Parei
Numa folha tão cheia
Quanto vazia é a vida
Daqueles que não amam...

Parei
Pelos campos verdejantes
Alcatifados de mantos dourados
Onde pairam eternamente recordações
Intocáveis e discretas
De tão felizes tempos passados.

Parei
Invejei cada gota de orvalho
Pela exactidão do seu cortejo
Invejei cada memória
Onde permanecia o sabor do teu beijo
Que se rasgou também, no tempo.

E não sei dizer sim à vida...

Parei
E desde lá...
Nunca, nunca, nunca mais me encontrei...

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

É igual

Que ruído tão grotesco
De gritos esbanjadores e sonolência
De guionista, cenário e fundo animalesco
É igual, monótono e pitoresco.
Fecham-se as pálpebras,
Dor...mência!
Zzzzzzzzzzz!

A calçada é igual...
A fachada é igual...
A tinta é igual...
Igual, igual, igual.
Nada de encanto singular
Numa sala decorada de notáveis peças.

A criatividade?
Olha, fugiu-me!
Escondeu-se e evaporou-se
Como a água após passar o leito.
A autenticidade?
Olha, tiraram-ma!
Arrancaram-ma quando fizeram de mim um molde
A espelhar por toda a parte.

Metabolismo da treta este,que absorve rancores
E se congestiona com sentimentos baldios.

Alistam-se exércitos de clones
Na rede de pousios onde raiará sangue.
Aqui?
Florescerão tão belos esqueletos!
Jorrarão missivas de arrependimento
Ressoando como insígnias em panfletos
De tão repetido repetimento!

E histórias afundar-se-ão numa garrafa de vidro
Sem tempo para arrependimento
Nem pensamento... no tempo devido.
Aviso, aviso! Alerta...
Em vão.

E a fachada é igual...
E o sangue é igual...
E a adenina é igual...
E a timina é igual...
E a guanina é igual...
E a citosina é igual...

Muda o homem...

Não, que o homem é igual!
E é tudo igual...
Igual, igual, igual, igual, igual, igual, igual, igual.

Zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz!


Chegou a sonolência.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Bateria Fraca

Quando perco o rumo, sinto que a prosa me olha ameaçadora e me empurra ao encontro de um abismo interminável, recheado de letras e frases decompostas que fogem a uma possível reconstrução de ordens e sucessões magicadas pelo meu cérebro.
Quando perco o rumo, sinto que o chão é apenas ilustrativo porque o fosso onde caminho é colossal e recheado de pedras flutuantes, raiado pelo céu tão negro que quase nem enaltece a beleza do Outono cá de baixo.
Quando perco o rumo, rodopio entre presente e passado e deixo bem abertas, prontas a salgar, as feridas cozidas à pressa por inconvenientes mudanças pelas quais tive de discernir. Deixo-as, de tal forma abertas, que quase é possível ver as entranhas e cada pedaço reles e satânico que me possui. A bateria fraca da bomba que me move, tira-me do chão, faz-me levitar... aos poucos... levemente... Até que volto ao labirinto de dissabores, o labirinto circular, cujas paredes nuas e com défices precários contam, palreando entre si, a história da minha vida. 
Quando perco o rumo, perco as cores, os sabores, a noção das horas, a vida que corre nas veias finas e doentias que arrastam o teu nome... Perco o dia, a noite, as estações, os meses e os anos, as maleitas doentias e as cartas do destino que se confundem mutuamente. Tudo num corrupio tão confuso que, com tal azáfama, a respiração nem tem vagar para se soltar dos lábios roxos nem a visão consegue exercer funções e cumprimentar as pupilas dos teus olhos castanho-mel.
Quando perco o rumo, perco-me. Perco-me do que sou e do que fui e vejo um monstro cheio de jeitos ridículos a mexer-se do outro lado do espelho. Perco-me das pessoas e afasto cada uma das suas insistências, ainda que carregadas de boas intenções.
Quando perco o rumo, perco-vos e quero-vos tão longe quanto a Lua está da Terra, tão longe quanto o Sol está de mim, tão longe quanto a poeira espacial está da terráquea. Longe o suficiente para que não vos ouça, nem sinta, nem veja!
Quando perco o rumo, perco-nos. Ah mentira! Até sem cores nem sabores nem horas nem vida a patinar pelas veias nem dias nem noites nem estações nem meses nem anos nem formas nem confins e afins de pensamentos alheios revelados, eu nos perco! E talvez seja essa a maldição que carrego, que me crucifica e me esfola os sentidos provocando dores em órgãos que desconheço existir.
No entanto... Entretanto nunca amei, é apenas juvenil obsessão. Não tenho forças ou leis para amar, nem muito menos coração!
Pi-pi-pi-pi-e-infindáveis-pi's dão o alerta de bateria fraca!
Estou quase quase a sucumbir, a desligar... (Carregador e tomada? Hã?!)