O sonho dá-nos direcções e indicações como o velho senhor que repousa na esplanada e conhece os cantos todos à cidade. Veio quando ainda era moço dos lados de Alverca e por aqui se enamorou, casou e fez vida. Sabe 5 línguas e fala com os turistas perdidos pela cidade.
Nos tempos livres faz pinturas exímias de paisagens que nunca visitou, de feições que lhe surgiram em sonhos, de jeitos que esmiúça nos transeuntes que o circundam. É solitário. Os seus mais fiéis companheiros são o tabaco e o café que paga com trocos gastos e quase negros. O jornal é a sua fonte de informação porque opõe-se, a pés juntos, a todas as modernices. Tem companheiros de café igualmente solitários que discutem com ele a política, economia, cultura e a música. Não gosta de desporto.
- "Esses Ronaldos, Messes e compinchas ganham demasiado dinheiro e parecem umas mulas. São miúdos de egos altivos, irritantes e desprezáveis só porque esses palermas dos jornalistas os glorificam. A mim não me fazem diferença alguma!"
- "Mas oh Zé, eles dão nome ao país de onde vêm bem como reconhecimento mundial! Isso, trazem turistas ao país que dão mais dinheiro ao comércio!"
- "A mim não me dão nada, não me trazem nada, não me fazem diferença. São mulas falsas e apegadas a grandes luxos! Ao pontapé era com eles!"
- "É verdade mas tomemos uma perspectiva sincera aqui! Qual o homem que não gosta de vida fácil e regalada, diga-me lá? Que não gosta de acordar com tudo feito e imensos luxos ao seu dispor? O café na mesa, a roupa lavada, a essência a lavanda pela casa..."
A conversa dissipa-se como o fumo do cigarro.
O corropio das ruas é imenso, é hora de almoço. Uns com sandes na mão a correr enquanto falam ao telemóvel. Advogados imagino. Outros espalhados pelos restaurantes, pelas tascas e pelos pequenos cafés. Pessoas de aparência humilde, senhoras que carregam sacos da Louis Vuitton, homens de negócio com jeitos estranhos no falar, velhos que observam as pombas e as alimentam, os mais jovens nas filas intermináveis para aquela comida que os americanos lhes impingem e que os torna redondos como bolas de berlim.
A cidade em movimento, o buzinar dos carros, a rapidez de uns, a serenidade de outros. A mudança do semáforo. Peões em corrida. O céu azul e os pássaros a cantar sob a borda dos chafarizes. O mundo do senhor Zé que dá direcções e indicações na mesa do café enquanto resmunga da artrose que lhe pica o corpo. O seu dia-a-dia de observador que transpõe para trabalhos pictóricos muito apreciados pelos entendidos de arte. O senhor Zé não os quer vender. O trabalho dedicado e as pinceladas do coração não devem ser vendidas por preço algum. O trabalho dos sonhos é mais do que um simples trabalho. Trabalho implica receitas e planificações. Trabalhar os sonhos é lutar para que eles fiquem menos disformes, agarrar numa corda firme e encurtar a distância à realidade, é alisar os paralelos levantados do caminho e alcançar o pretendido. Sonhar é o que é preciso para não deixar o coração doente porque os sonhos flutuam sobre o nosso coração como uma nota musical em compasso melodioso pelos céus da outonal cidade, trazendo-nos a paz, a força e o vigor necessários para enfrentar os monstros impiedosos dos nossos dias. Os sonhos voam,voam,voam. Alguns perdem-se, outros ficam presos nas varandas altas dos prédios, outros alcançam a meta a que se propuseram. Outros ainda, partem-se em pedaços e espalham-se para criar novos sonhadores.Viver sem sonho não é viver. O sonho move-nos. O sonho dá-nos direcções e indicações como o senhor Zé. Ele é, também, um sonhador nato. Aguarda pacientemente o dia em que a esposa o reconheça mesmo sabendo que a sua degeneração não o permitirá. Mas ele aguarda na sua nobre alma de sonhador.
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